Depois da entrevista de Alberto Carlos Almeida, autor do livro "A cabeça do brasileiro", no programa Roda Viva (27/08/07), foi difícil acalmar a cabeça o suficiente para conseguir dormir, tamanha a inquietação que aquilo me causou. O sociólogo apresentou, ao meu ver, um festival de afirmações reacionárias, contraditórias e que são, na maior parte, resultado de raciocínios ilógicos e distanciados da realidade. E os entrevistadores, sem exceção, não conseguiram expor as contradições do entrevistado, apesar de alguns terem mostrado claramente que as perceberam.
Não quero com esse texto comentar apenas a entrevista ou as afirmações do entrevistado. A repercussão do programa no blog de Reinaldo Azevedo me interessou também e penso que comentá-la serve como porta de entrada para criticar o que encontro de errado nas posições de ambos.
No blog do colunista da revista Veja, encontrei um post sobre a entrevista e depois mais outro.
"Com base em dados empíricos, colhidos numa pesquisa, ele [Alberto Carlos] descobriu que a educação torna, na média, as pessoas menos tolerantes com os desmandos e mais tolerantes com a diferença; menos tolerantes com as incompetências do estado e do governo; mais tolerantes com a individualidade — sua e alheia."Dessa maneira o colunista resume as teses do livro de Alberto, apoiado no resumo feito pela revista Veja, comentado pelo Douglas em outro post do Parou Parou. A meu ver, existem muitas posições políticas entremeadas nesse resumo que, pelo que vi na entrevista, estão realmente presentes no discurso do sociólogo. Quanto ao resumo em si, um ponto específico dele a atentar é a marca de autoridade que confere ao 'colhido numa pesquisa', que exclui completamente os questionamentos sobre os objetivos da mesma ou os métodos utilizados. Sabe-se que em pesquisas de cunho estatístico seus resultados só podem ser interpretados corretamente se esses elementos são evidenciados e coerentes. Sobre esse assunto, ver post sobre a pesquisa da Folha, também do Douglas.
É realmente interessante notar como Reinaldo associa, em seu post, ética e tolerância com ética relativa à corrupção no Estado e tolerância à individualidade, para só então chamar esses valores de democráticos e dizer que a elite escolarizada os têm em maior conta. Claro que ética e tolerância são valores democráticos, isso é algo óbvio, e que uma escolarização de qualidade, crítica, pode estimulá-los, mas dizer que a elite brasileira tem esses valores porque é mais escolarizada é um silogismo que não se verifica na realidade. Escolarização sem criticidade só gera ingênuos mais esclarecidos, passíveis de conceber a realidade nacional através de esquemas descolados da realidade objetiva da sociedade, esquemas alienados da realidade objetiva e de seu obrigatório condicionamento histórico e social. Para mais informações, ler Álvaro Vieira Pinto! Vide o longo histórico de políticos da elite, escolarizados, corruptos ou intolerantes. A desculpa dada no Roda Viva por Alberto Carlos Almeida de que seu estudo representa uma média, dentro da qual existem extremos e que esses extremos englobariam desvios como esses casos de corrupção ou violência intolerante da elite, é claramente parcial e forçado. Por que essa mesma lógica do desvio estatístico não pode ser aplicada aos extremos que ocorrem na não-elite, no povo?
Azevedo parte então para uma crítica da atuação do professor da USP Franciso Alambert no Roda Viva, na minha opinião um tanto quanto infeliz, pois não conseguiu apontar de maneira articulada suas objeções ao entrevistado. Após tomar algumas medidas retóricas para desqualificar qualquer crítica vinda de Alambert, o colunista-blogueiro afirma o seguinte:
"Ah, acontece que a pesquisa mexe com duas taras das nossas esquerdas: 1) as elites (palavra que nem está no livro) brasileiras são especialmente malvadas, perversas mesmo; 2) o povo é dono de um saber que vai se formando na luta: o saber do oprimido."Eu me considero de esquerda, sou brasileiro e não tenho nenhuma tara por nenhum desses dois pontos. Primeiro, porque para para mim a elite não é especialmente malvada ou perversa, pois esses não são os termos para definir o que considero negativo em sua natureza. Ao defender essa elite brasileira como vanguarda moderna, esclarecida, passamos a acreditar em uma aristocracia esclarecida que deve guiar o país ao seu futuro de glória e harmonia, sendo que na verdade essa elite é fruto de uma história de dominação e exploração que não pode ser ignorada. Supor que todos podem se aproximar da elite (a tese de que escolarização para todos transformaria o Brasil em uma Suécia em 2025) ignora o ponto essencial da existência dela: a exploração da capacidade produtiva dos que não a compõem. A elite é, por definição, restrita e minoria. A elite brasileira, ao acreditar em um progresso significativo da sociedade sem rupturas e que, sem a retirada de qualquer privilégio, aproxima o outro de suas condições de vida é possível, demonstra sua ingenuidade e a total ignorância da realidade obejtiva do funcionamento da sociedade. Não é apenas por valores morais que uma sociedade se transforma: isso é uma visão idealista e, repito, ingênua.
Em um segundo momento, Reinaldo Azevedo ataca uma visão que ele descontextualiza e estupidifica. A tese de que o povo tem um saber formado pela vivência, saber esse inacessível para a elite, que não o compreende e o ignora, dando a seus detentores a pecha de ignorantes, está longe de ser uma 'tara de esquerda'. Azevedo simplesmente omite o fato de o ser humano ser essencialmente histórico e que a história não existe apenas nos livros de escola. O ser humano consciente de seu entorno e, por extensão, crítico, existe independente de sua escolaridade ou classe social. Criticidade é ter consciência da realidade e de seu próprio condicionamento ao apreender essa realidade objetiva. A história e o saber acumulado pelo viver a história acrescentam ao homem, isso é inegável e é uma das teses de um dos maiores intelectuais brasileiros, Paulo Freire. Não é colocar o 'povo' em um pedestal; esse é um saber como os outros, que não pode ser ignorado ou idealizado e, sim, criticado em suas limitações e possibilidades.
Um outro ponto que me inquietou é como o progresso nacional é concebido por ambos, Azevedo e Alberto Carlos Almeida, como a aplicação exata dos preceitos do neoliberalismo. Para eles, estatizante é necessariamente sinônimo de arcaico e liberal, de democrático e tolerante, sem que quaisquer outras alternativas possam ser consideradas. Parece que no plano da realidade econômica nacional o nosso progresso é mantermos tudo privado e, em nossa plataforma humana, sermos morais e tolerantes. Fica a pergunta se esses são realmente os critérios para definir uma sociedade melhor.
Penso que esse discurso todo apenas serve a uma coisa: autorizar a elite a seguir julgando como bem entender o futuro da nação, pois a participação do povo ignorante só poderia fazer destruir os altos valores morais da modernidade.
Opine!
Enric "Grama"
Enric "Grama"
ps. Depois escrevo sobre o que foi dito sobre escravidão nesse programa. Assustador.
2 comentários:
Eu tinha alguma coisa pra comentar mas esqueci...
Sou entrevistador de institutos de pesquisas de opinião há 15 anos e li o questionário do sociólogo Alberto Carlos de Almeida. Sei que sou um mero "coletor de dados", não faço análise de pesquisas. Mas ao ler o questionário percebi que ele usa a mesma linguagem dos jornais e revistas que os de nível superior costumam ler. É claro que essa gente achou que ficaria feio concordar com certas coisas. Não sei se vou conseguir explicar isso. Eu não tenho nível superior....mas vamos lá... perguntas sobre coisas obviamente erradas, mas que todos fazem, ou que é aceito como muito feio fazer, geralmente conduzem a pesquisas com resultados furados. Uma vez, numa pesquisa, eu entrevistei motoristas das classes A e B e perguntei se eles apoiariam o rodízio de placas de automóveis se o mesmo não envolvesse multa, se fosse apenas voluntário. A maioria respondeu que sim! Que apoiaria! Resultado publicado na Folha de São Paulo mostrou o mesmo índice de respostas nos questionários de todos os entrevistadores da equipe,com motoristas de todas as regiões da cidade e de todas as classes sociais. Eu duvido do resultado!!!! Nós entrevistamos, eles responderam, mas mentiram descaradamente!!A pergunta era muito ingênua. As pessoas queriam fazer bonito. Eu, um moço de óculos, cara de "intelctual",ou pelo menos "confiável", entrevistador do Datafolha, postado numa esquina da rua Estados Unidos, em São Paulo... Voltando a falar sobre a pesquisa polêmica do sociólogo, eu acho que os analfabetos seguer entenderam parte das perguntas do questionário ou então acharam que certas coisas são erradas por que eles não enxergam isso na prática. Uma doméstica chamando o pratrão de "você" e subindo pelo elevador social? Coitada! Ia perder o emprego. Não se vê isso na prática! Ou será que as empregadas não sobem porque não querem? Fico imaginado como responderiam essa pesquisa pessoas como o juíz Lalau, o Collor, o Paulo Maluf, a dupla de "zés" - o Dirceu e o Genuíno ou mesmo o banqueiro Salvatore Cacciola!!!!É claro que eles saberiam como responder "bonito"! Eles sabem o que é "politicamente correto". Ma... e na prática? E olha que essa gente estudou mais o que o ensino médio, ou estou enganado?
André Felix
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