27 de mai. de 2007

artigo de Maria Sylvia Carvalho Franco

artigo publicado na Folha de São Paulo de hoje.

Entre quatro paredes

Conhecimento dirigido à imediatez prática tolhe as universidades e deixa pesquisadores sem escolha

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O conhecimento é assunto de Estado e não deve prestar-se a capciosas tentativas de privatização indigente. Intromissões do atual governo tentam jogar as universidades públicas na grande bacia das almas de transferência do que é estatal para o domínio particular: passo decisivo foi submetê-las a uma repartição gestora de todo o "sistema de ensino superior paulista".
Justifica-se tal ato repisando que as universidades públicas sempre estiveram submetidas a alguma secretaria.
A memória brasileira é curta, mas, aqui, curtas são as pernas da mentira. A USP tornou-se autarquia em l944, com dotação orçamentária global e "poder de decisão e distribuição dos recursos recebidos, mediante elaboração de orçamento próprio".
Nesse passo, o professor Miguel Reale, membro do Conselho Administrativo do Estado, convenceu-se de "que a autonomia seria ilusória se o reitor continuasse a despachar com o secretário de Educação" e apresentou emenda "em virtude da qual todas as funções daquele secretário, relativas ao ensino superior, passavam a ser exercidas pelo reitor da USP, disposição esta que, em um primeiro momento, se estendeu aos atos normativos das novas universidades criadas". Com decisão unânime, "o reitor adquiriu status de secretário de Estado, passando a despachar semanalmente com o chefe do Executivo paulista, praxe louvável que, se não me engano, só foi respeitada até o governo de Laudo Natel" ("Minhas Memórias da USP", disponível no site www.scielo.br).
Por muito tempo, assim, os reitores responderam diretamente ao governador. Por que o Cruesp [Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo] não poderá fazê-lo?
O governo Serra desatina: usa meios burocráticos, ditos racionalizadores, para abolir uma função pública essencial à lógica e razão do Estado moderno: o monopólio do saber.
Mantido pela igreja, o dogma e a censura teológico-política foram rompidos, em secular e duro combate, pela crítica do conhecimento, reabrindo a dúvida e reinstaurando a cultura laica, de domínio público.
Nessa luta, firmou-se o lema de Francis Bacon: "Knowledge and power meet in one" [traduzido correntemente por "conhecimento é poder"]. Subjaz a esse vínculo uma das condições básicas ao trabalho científico: a capacidade de afrontar o dogmatismo e o estereótipo, mobilizando tradições de saber aliadas a descobertas inovadoras, mantendo o conhecimento à altura de seu tempo. Ciência-técnica-política são as suas vigas mestras.

Palavras proféticas
Bacon acata o saber ligado à prática, mas aponta, como barreira ao progresso do conhecimento, o descaso pelas ciências básicas, únicas capazes de nutrir a técnica, teses retomadas por Hobbes.
Hoje, quando as especializações se ampliam e o mercado invade a produção científica, com urgência de lucros, fragmentação da pesquisa e declínio da base acadêmica, o programa proposto por Bacon não poderia ser mais cortante.
Sua restauração do saber conjuga produção científica e poder público em instituições definidas por formas e conteúdos inerentes à atividade científica.
Desatento à pesquisa, o Estado, nem mesmo para suas próprias tarefas, reúne pessoas capazes: seu descaso gera "um deserto de homens". Palavras proféticas: hoje escândalos se sucedem na República ao passo que mal aparecem estadistas empenhados em áreas do saber.
O conhecimento dirigido à imediatez prática (utilidade social direta, subsídios a empresas, serviço ao mercado, adestramento empregatício etc.) tolhe as universidades, definindo linhas de investigação e critérios de "excelência", impondo limites de tempo e deixando os pesquisadores sem escolha: ou ajustam-se ou excluem-se.
No mundo regido pela ciência e pela técnica, dominado por centros hegemônicos, o trabalho da teoria, o uso prudente dos conhecimentos, a prática desvinculada da imediatez são os meios capazes de enfrentar a violência com que os interesses lucrativos e a cobiça política estilhaçam a sociedade e a cultura.
Nem chegamos a imaginar o sentido atual do maldito conceito de imperialismo. Investigações sociopsíquicas para fins bélicos, impulsionadas na Segunda Guerra, converteram-se em procedimentos além da ficção científica (como abordagens matemáticas e computacionais para simular processos biológicos complexos ou "próteses" -pequenos chips- para corrigir danos ou dirigir cérebros normais), em experimentos que ignoram o Código de Nuremberg [criado em 1947 pelo tribunal internacional encarregado de julgar os nazistas].
Trilhões de dólares são investidos pelo Pentágono, a Casa Branca e as agências de segurança na condução dessas pesquisas (ver J.D. Moreno, "Mind Wars").
O próprio Bacon poderia temê-las. Em sua utopia, discute quais invenções, experiências e descobertas devem ser publicadas ou escondidas, sob juras de segredo. Só algumas são reveladas ao Estado.
Sobre os critérios dessa escolha, nada é esclarecido, mas o lorde chanceler devia calcular o que dizia, partícipe que foi dos dois lados: do Estado repressor e da ciência em luta contra a censura.
Todo aquele poderio não se estriba apenas em riqueza material: um forte legado do saber renascentista, em especial seu viso puritano, foi transposto para a Nova Inglaterra e alimentado em Harvard, logo após a chegada dos peregrinos e, depois, em Yale.
Quase 400 anos de vida universitária independente, contra o obscurantismo na colônia portuguesa. O tanto que conseguimos, em menos de um século, não merece ser destruído.

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO é professora titular de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas e autora de Homens Livres na Ordem Escravocrata (ed. Unesp).

Um comentário:

Pitty que Pariu disse...

Além da memória curta o brasileira tem preocupações curtas. Uma matéria vigorosa e tão eloquente como esta e nenhum comentário?
Sintomático!