Texto publicado na Folha Online, dia 24 de maio de 2007
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2405200708.htm
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
A autonomia universitária é ameaçada, antes, por esses focos de irracionalidade que a impedem de pensar e esboçar projeto de reforma
A CADA dia as universidades estaduais paulistas perdem um pedaço de sua autonomia. Pois esta configura, antes de tudo, um dos meios mais eficazes para cumprir o mandato -que o Estado e a sociedade paulista lhes conferiram- para realizar, da melhor forma possível, pesquisa, ensino e extensão em nível superior. Quando a universidade passa sistematicamente a solapar uma de suas tarefas, deixa de cumprir esse mandato, pondo em risco a autonomia duramente conquistada.
Até quando se pode admitir que uma instituição pública passe a girar em falso a seu bel-prazer?
Nos últimos anos, a cada mês de maio, alguns de seus institutos ou algumas de suas categorias entram em greve. Não é toda a universidade que pára, pois muitas escolas continuam a manter a rotina dos trabalhos.
No entanto, nas mais "letradas", uma vez os professores, outra, os alunos e, por fim, os funcionários iniciam o movimento. Tomam em geral como bandeira reivindicações salariais, as mais justas, pois, na média, os salários do pessoal universitário estão incrivelmente baixos.
Costuma-se exigir um aumento da cota de 9,57% da arrecadação do ICMS, recursos a serem geridos pelos próprios universitários, sem que se examine se tal aumento cabe na organização racional e democrática do Orçamento ou se simplesmente vem aumentar privilégios de classes já altamente privilegiadas.
Basta passar os olhos nas demais reivindicações dos estudantes, como a residência indefinida nas moradias instaladas nos campi, para que se perceba o caráter nitidamente pequeno-burguês do movimento. No que concerne aos salários, salvo engano meu, desconheço uma proposta séria de reestruturação do Orçamento que venha compensar o perverso sistema de aposentadoria de professores e funcionários. Este já criou, só na USP, um rombo de quase 30% dos recursos que lhe cabem.
Ora, desde o momento em que a autonomia foi negociada, sabia-se que a universidade só poderia ter equilíbrio financeiro se fosse criado um fundo de pensão que aliviasse a folha de pagamento. Mas ninguém tem anuído em pagar esse custo. Confundem-se verbas com maná que cai do céu.
Neste ano, a reivindicação maior é anular os decretos do governador José Serra que, entre outras medidas, criam a Secretaria de Ensino Superior e subordinam a ela as três universidades. Estas sempre estiveram ligadas a esta ou àquela secretaria, mas, como a redação dos decretos é confusa, tem havido margem a toda sorte de mal-entendidos. O governo vem sistematicamente tentando explicar os pontos obscuros, a ponto de os três reitores já terem declarado que não vêem nenhum bicho-papão pronto a devorar a autonomia universitária.
Se ainda restam tensões, por que não negociar uma nova redação dos decretos? Por que os ilustres reitores não encaminham uma proposta viável que nos retire do impasse?
Mas a greve não termina porque foi absorvida pelos delírios de maio, por esse verme que corrói os intestinos de vários institutos, a fim de que a normalidade do ano letivo seja deturpada e o programa das reivindicações políticas se descole do real, crie fantasmas que possam colaborar com outros fantasmas políticos de que a sociedade brasileira está cheia.
Aliás, ela corre no mesmo sentido da desestruturação completa de nossos aparelhos de Estado, mergulhados no abismo enquanto a economia nacional se alinhava sem eles.
Agora, por volta de 250 professores, dentre aproximadamente 5.000, decidem que também o corpo docente da USP entra em greve. Além da defesa da autonomia ameaçada, há uma série de novas reivindicações. Alguma negociação a esse respeito já foi tentada? Ou os professores, amuados, avisam que param de brincar?
No fundo, reside um projeto político antidemocrático que ensina alunos, funcionários e professores a desobedecer toda ordem constituída, a não cumprir contratos, a não ter responsabilidade pelo trabalho que deveriam estar desenvolvendo.
Tudo isso sem risco, pois, não tendo sido o direito de greve até agora regulamentado, os salários continuarão sendo pagos. Por sua vez, as aulas perdidas serão repostas, como se um ano letivo truncado pudesse ser refeito em poucos dias e muito pouco trabalho. Mantém-se apenas a tradição de fazer de conta que se trabalha, e se reforça o hábito da impunidade.
De fato, tudo me leva a crer que a autonomia universitária está sendo ameaçada, mas, antes de tudo, por esses focos de irracionalidade interna que impedem que a universidade se pense a si mesma e esboce o projeto urgente de sua reforma.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre outras obras, "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras).
A CADA dia as universidades estaduais paulistas perdem um pedaço de sua autonomia. Pois esta configura, antes de tudo, um dos meios mais eficazes para cumprir o mandato -que o Estado e a sociedade paulista lhes conferiram- para realizar, da melhor forma possível, pesquisa, ensino e extensão em nível superior. Quando a universidade passa sistematicamente a solapar uma de suas tarefas, deixa de cumprir esse mandato, pondo em risco a autonomia duramente conquistada.
Até quando se pode admitir que uma instituição pública passe a girar em falso a seu bel-prazer?
Nos últimos anos, a cada mês de maio, alguns de seus institutos ou algumas de suas categorias entram em greve. Não é toda a universidade que pára, pois muitas escolas continuam a manter a rotina dos trabalhos.
No entanto, nas mais "letradas", uma vez os professores, outra, os alunos e, por fim, os funcionários iniciam o movimento. Tomam em geral como bandeira reivindicações salariais, as mais justas, pois, na média, os salários do pessoal universitário estão incrivelmente baixos.
Costuma-se exigir um aumento da cota de 9,57% da arrecadação do ICMS, recursos a serem geridos pelos próprios universitários, sem que se examine se tal aumento cabe na organização racional e democrática do Orçamento ou se simplesmente vem aumentar privilégios de classes já altamente privilegiadas.
Basta passar os olhos nas demais reivindicações dos estudantes, como a residência indefinida nas moradias instaladas nos campi, para que se perceba o caráter nitidamente pequeno-burguês do movimento. No que concerne aos salários, salvo engano meu, desconheço uma proposta séria de reestruturação do Orçamento que venha compensar o perverso sistema de aposentadoria de professores e funcionários. Este já criou, só na USP, um rombo de quase 30% dos recursos que lhe cabem.
Ora, desde o momento em que a autonomia foi negociada, sabia-se que a universidade só poderia ter equilíbrio financeiro se fosse criado um fundo de pensão que aliviasse a folha de pagamento. Mas ninguém tem anuído em pagar esse custo. Confundem-se verbas com maná que cai do céu.
Neste ano, a reivindicação maior é anular os decretos do governador José Serra que, entre outras medidas, criam a Secretaria de Ensino Superior e subordinam a ela as três universidades. Estas sempre estiveram ligadas a esta ou àquela secretaria, mas, como a redação dos decretos é confusa, tem havido margem a toda sorte de mal-entendidos. O governo vem sistematicamente tentando explicar os pontos obscuros, a ponto de os três reitores já terem declarado que não vêem nenhum bicho-papão pronto a devorar a autonomia universitária.
Se ainda restam tensões, por que não negociar uma nova redação dos decretos? Por que os ilustres reitores não encaminham uma proposta viável que nos retire do impasse?
Mas a greve não termina porque foi absorvida pelos delírios de maio, por esse verme que corrói os intestinos de vários institutos, a fim de que a normalidade do ano letivo seja deturpada e o programa das reivindicações políticas se descole do real, crie fantasmas que possam colaborar com outros fantasmas políticos de que a sociedade brasileira está cheia.
Aliás, ela corre no mesmo sentido da desestruturação completa de nossos aparelhos de Estado, mergulhados no abismo enquanto a economia nacional se alinhava sem eles.
Agora, por volta de 250 professores, dentre aproximadamente 5.000, decidem que também o corpo docente da USP entra em greve. Além da defesa da autonomia ameaçada, há uma série de novas reivindicações. Alguma negociação a esse respeito já foi tentada? Ou os professores, amuados, avisam que param de brincar?
No fundo, reside um projeto político antidemocrático que ensina alunos, funcionários e professores a desobedecer toda ordem constituída, a não cumprir contratos, a não ter responsabilidade pelo trabalho que deveriam estar desenvolvendo.
Tudo isso sem risco, pois, não tendo sido o direito de greve até agora regulamentado, os salários continuarão sendo pagos. Por sua vez, as aulas perdidas serão repostas, como se um ano letivo truncado pudesse ser refeito em poucos dias e muito pouco trabalho. Mantém-se apenas a tradição de fazer de conta que se trabalha, e se reforça o hábito da impunidade.
De fato, tudo me leva a crer que a autonomia universitária está sendo ameaçada, mas, antes de tudo, por esses focos de irracionalidade interna que impedem que a universidade se pense a si mesma e esboce o projeto urgente de sua reforma.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre outras obras, "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras).
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